As políticas voltadas para o trabalho doméstico e de cuidados estão na agenda dos movimentos feministas desde sempre e têm ganhado destaque no âmbito do Governo Federal, que está formulando a Política Nacional de Cuidados. Em ano de eleições municipais, contudo, faz-se necessário discutir mais diretamente o que esperamos dos municípios em termos de políticas voltadas para essa área. Quais papeis as prefeituras e assembleias legislativas municipais podem cumprir para dar maior visibilidade aos trabalhos domésticos e de cuidados, aliviar a carga que esses trabalhos implicam para mulheres em termos de tempo e dedicação e fomentar o debate a respeito da necessidade de compartilhar esses cuidados com a sociedade como um todo e com o Estado?
Conforme análise desenvolvida por CARRASCO (2002), o trabalho doméstico e de cuidados pode ser dividido em dois componentes: um é indissociável das relações afetivas e, portanto, não encontra substituto no mercado ou nos serviços públicos; outro é formado por bens e serviços que encontram substitutos nessas esferas. A solução via mercado para o alívio da carga de trabalho que recai sobre as mulheres, como tantas outras soluções que passam por essa via, é excludente e perpetua desigualdades. Parte significativa das mulheres não têm renda suficiente para contar com ajuda paga. E as que têm, em grande medida, recorrem às que não têm: milhares de empregadas domésticas, babás e cuidadoras, que encontram nesses empregos uma das poucas alternativas de geração de renda e precisam equilibrar diariamente os cuidados das famílias dos outros e das próprias famílias. O ônus dos trabalhos domésticos e de cuidados, portanto, recai sobre todas as mulheres (ou quase!), mas não da mesma forma: há marcadores de classe e raça que também atuam fortemente aumentando o peso carregado pelas mulheres pobres e negras1.
Nesse sentido, pensando no papel do poder público municipal, o município é, antes de tudo, um provedor de serviços. Cabe a ele, portanto, ofertar serviços de qualidade, que incorporem as demandas das mulheres em sua formulação e mitiguem desigualdades de gênero, raça e classe. Os impactos dos cortes de gastos sobre a qualidade dos serviços públicos, por exemplo, são sentidos pelas mulheres (umas mais do que outras, claro), cujos tempos servem como variável de ajuste para o Estado Neoliberal. Se a jornada escolar diária diminui ou se uma criança está doente e não tem atendimento adequado nas unidades públicas de saúde, são as mulheres que frequentemente adaptarão a sua rotina para dar conta da carga extra de cuidados derivada da ausência do Estado.
Políticas das áreas de saúde e educação costumam ser as mais lembradas nesse debate. Entretanto, é importante ir além. Há outros serviços que poderiam ser absorvidos pelo Estado, mas que seguem sob a responsabilidade majoritária das mulheres. Serviços estes que não dizem respeito somente ao cuidado de pessoas dependentes, como crianças, idosos e doentes, mas de todas as pessoas. É possível que o Estado assuma, progressivamente, o trabalho das mulheres em outras áreas, provendo comida barata e de qualidade por meio de restaurantes populares e cozinhas comunitárias; garantindo alimentação saudável, de qualidade e com múltiplas refeições ao longo do dia nas escolas e creches; disponibilizando serviços de lavanderias públicas e a lavagem de uniformes dos alunos da rede pública de educação; etc. Não menos importante é pensar uma cidade, com seus espaços e meios de deslocamento para as pessoas responsáveis pelos cuidados. O modelo de transporte público focado exclusivamente no trajeto casa-trabalho-casa, por exemplo, não leva em consideração as múltiplas tarefas de mulheres ao longo do dia, que, além de trabalharem fora de casa, levam e buscam filhos na escola, acompanham familiares em consultas e procedimentos médicos ou que são responsáveis por fazer compras para a casa.
O papel que o poder público municipal pode desempenhar nesse âmbito, porém, vai além da provisão de serviços. O município, é, também, um relevante empregador nas suas localidades. De acordo com a Pesquisa de Informações Básicas Municipais – MUNIC (IBGE), em 2021, havia mais de 6 milhões de pessoas empregadas na administração direta dos municípios. Sua importância, sob esse aspecto, varia nas diferentes cidades, podendo ganhar proporções muito grandes nas pequenas e nas mais pobres. Se, por um lado, mudanças na legislação trabalhista que poderiam beneficiar as mulheres não cabem a essa esfera de governo, por outro, o município pode promover algumas mudanças na normatização do trabalho de seus próprios servidores. É possível, por exemplo, prorrogar a duração da licença paternidade, contribuindo com uma maior participação dos pais nos cuidados de seus filhos no início da vida; ou adotar regimes de trabalho mais flexíveis para pais e mães de crianças pequenas ou cuidadores de pessoas dependentes, priorizando esses grupos para serem beneficiados com políticas como a de trabalho híbrido. Esse tipo de medida implica benefícios diretos para as famílias dos servidores públicos municipais, que podem representar uma população maior ou menor a depender do município; mas também serve como exemplo para outros setores, podendo incentivar a expansão desses direitos a todos e todas.
Ainda no campo dos exemplos, é importante que prefeituras e câmaras de vereadores promovam uma maior participação das mulheres nos espaços de poder. Certamente, esta é uma questão que vai além do trabalho doméstico e de cuidados, mas que também beneficia as mulheres nesse campo. A política tem sido um espaço hostil às mulheres, que, por conta disso e de sua sobrecarga de trabalho, têm uma participação ainda bastante reduzida ali. Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral, apresentados na publicação “Estatísticas de Gênero – Indicadores sociais das mulheres no Brasil”, do IBGE, as mulheres representavam 12,1% dos prefeitos e prefeitas eleitos em 2020, e 16,1% dos vereadores e vereadoras eleitos no Brasil no mesmo ano. Consequentemente, as políticas públicas são pensadas majoritariamente por homens para homens, não incorporando nossas demandas, em especial no que diz respeito à temática aqui discutida. Prefeitas e prefeitos, portanto, precisam garantir um secretariado mais paritário, com maior participação de mulheres. Da mesma forma, vereadores e vereadoras precisam contribuir para que as assembleias legislativas municipais sejam espaços menos hostis às mulheres e mães, tanto em termos estruturais, quanto em termos de respeito e participação das que já ocupam esses espaços. Mais mulheres na política é, também, mais políticas de cuidados para todos e todas.
Finalmente, executivo e legislativo municipal também podem ser parte de mudanças que excedem o papel do Estado, isto é, que dizem respeito ao componente afetivo do trabalho doméstico e de cuidados que não pode ser substituído por um agente externo. É fundamental que esse componente não fique a cargo apenas ou majoritariamente das mulheres e mães, mas seja compartilhado por toda a sociedade. Nesse sentido, o Estado, e, no caso, o poder municipal podem financiar projetos que incentivem esse compartilhamento de cuidados, como é o caso das cozinhas comunitárias. Comida e muitos outros elementos da sustentabilidade da vida associados ao trabalho doméstico e de cuidado também são afeto e convivência, mas isso não significa que a responsabilidade por sua provisão deva recair mais sobre nós.
Os membros do executivo e legislativo municipais que serão eleitos neste ano têm inúmeros meios para garantir a implementação de políticas voltadas para o trabalho doméstico e de cuidados em suas localidades. Tais políticas devem incorporar as demandas das mulheres, aliviando a carga dessas atividades que pesa sobre elas; mas também devem ser voltadas para os homens, no sentido de garantir que eles se responsabilizem, tanto quanto nós, por essas tarefas. Devem, também, não perder de vista as outras múltiplas desigualdades que perpassam esse campo, considerando sempre que, se são as mulheres negras e pobres as que mais sofrem com o peso dessas tarefas, devem ser também elas as principais beneficiárias das mudanças. O Estado, enquanto provedor de serviços, empregador, fomentador de projetos e detentor do controle sobre espaços de poder precisa ser mais atuante nesse sentido, em todas as esferas.
Referências:
CARRASCO, Cristina. A sustentabilidade da vida humana: um assunto de mulheres?. In: FARIA, Nalu; NOBRE, Miriam. A produção do viver: Ensaios de economia feminista. São Paulo: SOF -SempreViva Organização Feminista, 2003. cap. 1, p. 11-49.
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. MUNIC – Pesquisa de Informações Básicas Municipais – 2021. Rio de Janeiro: IBGE, 2022. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/multidominio/cultura-recreacao-e-esporte/10586-pesquisa-de-informacoes-basicas-municipais.html?=&t=resultados
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estatísticas de Gênero – Indicadores sociais das mulheres no Brasil. 3ª edição. Rio de Janeiro: IBGE, 2024. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/multidominio/genero/20163-estatisticas-de-genero-indicadores-sociais-das-mulheres-no-brasil.html?edicao=39270&t=resultados
1 De acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC/IBGE) de 2022, apresentados na publicação “Estatísticas de Gênero – Indicadores sociais das mulheres no Brasil”, do IBGE, mulheres dos domicílios que estão entre os 20% mais pobres dedicam mais de 7 horas semanais a mais a afazeres domésticos e de cuidados do que mulheres dos domicílios que estão entre os 20% mais ricos. Mulheres pardas e pretas, por sua vez, gastam com essas tarefas quase duas horas semanais a mais que mulheres brancas. Todas elas gastam mais tempo com esses trabalhos do que os homens.